NOTA PRELIMINAR
"Be it as if I were with you"
Walt Whitman
Dispo-me de minhas palavras
e o que resta? o que resta de mim
sem as minhas palavras?
Estou gotejando palavras que querem sair,
cansadas de habitar meu corpo.
(Posso deixá-las escapar sem resistência?)
A boca está fechada.
Mas as palavras tentam romper pelos olhos e poros.
(Minhas palavras procuram o amor
em outras palavras que chegam ao meu ouvido.)
Uma mão acena e minhas palavras respondem.
Uma a uma vou retirando
colocando-as em ordem no papel.
Umas estão sujas e malcuidadas.
Outras, frescas e reluzentes.
Algumas são pura esperança.
Outras não têm nem sentido.
São palavras que conhecem
meu corpo e aprenderam com ele.
São palavras que me ensinaram
a conhecê-las e aprender com elas.
Talvez não sejam as mais indicadas.
Talvez não lhe agrade ouvi-las.
Mas foram elas que me deram
esse ofício: um certo jeito de ordená-las,
de preservar a própria vida.
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ÁGUA MOLE EM PEDRA DURA
Da bica os pingos caem,
um a um, repetidas vezes.
Corpos de cristal translúcidos,
chocam-se com o chão quase em silêncio.
Monotonamente parecem dizer
a mesma coisa sempre.
Sem a poesia de lágrimas ou chuvas,
os pingos caem da bica
repetidas vezes, um a um.
Poema inacabado, dissertam
sobre os mais variados temas.
E se não provocam enchentes,
ao menos deixam no cimento
o buraco, aberto por muitos,
demonstrar o acerto do ditado.
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QUANDO MEU PAI MORREU
À memória de
Cicero Brasileiro de Mello
Quando meu pai morreu
eu deitei ao lado dele na cama.
Fiquei na mesma posição.
E ouvindo minha respiração
parecia que ouvia a dele.
Quando meu pai morreu
eu deitei ao lado dele na cama.
Ouvi o silêncio do coração
e rezei, não lembro a oração.
Nunca mais conversaria com ele ...
Quando meu pai morreu
eu deitei ao lado dele na cama.
Segurei com carinho a mão,
que tantas vezes segurou minha mão,
e senti que nunca mais seria aquele.
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BAILARINA
Sete vezes louca a bailarina
As pernas transpassam em círculos
leves como se não precisassem do palco.
Os braços egípcios viram cobra,
hélice, seta, faca.
A música torna-se pele,
renasce única, híbrida.
O mundo todo dança em seus pés.
Sete vezes louca a bailarina.
Volta pra casa sete vezes por semana.
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POEMA DOS BONS ANOS
Leitura do Sermão dos Bons Anos,
do Pe. Antonio Vieira
Um bem por muito esperado
há de ser bem possuído,
para que a longa espera
realize o seu sentido.
Três dias passam depressa,
ou duram infinidades.
Três dias a quem espera
são mais: três eternidades.
Tamanha dor (a da espera)
que parece até castigo;
mas só se aplica o remédio
após vencer-se o perigo.
E é certo que os bons-anos
não os dá quem os deseja,
e sim quem os assegura.
Foi assim e assim o seja.
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NOITE DE ESTRELAS
Noite escura, sem luar,
quem brilha são as estrelas.
Inútil tentar contá-las...
Impossível esquecê-las...
Uma mostra-se vaidosa,
outra quase reticente...
Procuro a luz em mergulho
da linda estrela cadente...
Duas outras namorando
se beijam a noite inteira...
Amor...fiquemos assim...
qual a estrela companheira...
Aquela ali assanhada...
só quer alguém como prova
dos breves dias de glória...
Sorriso de estrela nova!...
Já a estrela da manhã
lembra versos do Bandeira...
Fiquemos assim ouvindo...
Estrela da vida inteira...
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À BEIRA DO RIO
Lavadeira bate o pano
Nas pedras frias do rio;
Cantando um canto cigano,
Não ouve meu assobio...
Que ginga tem a matreira;
Razão dos meus devaneios...
Abaixa o corpo, faceira,
Deixando à mostra os seus seios.
O pai trabalha na roça?
Que faz a mãe, os irmãos?
Morena - que a vida adoça -,
Quem são os seus cortesãos?...
De saia amarrada, pensa
que lava a roupa sozinha;
Trabalha com a indiferença
De verdadeira rainha.
Não; nem se importa comigo
Que sofro com meus desejos;
Não sabe os versos que digo
Pedindo pelos seus beijos.
Cansada deitou na grama,
Os olhos postos no céu ...
Será que dorme ou proclama
Um outro nome ... Cruel,
A musa, dona do rio,
Fugiu pra casa, ligeira;
O som do meu assobio
Assustou a lavadeira ...
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ADAGIÁRIO
Tenha calma, sossegue,
tudo, enfim, não se ajeita
pro diabo que o carregue
pau vergado endireita.
Bala não tem letreiro
no quartel dos Abrantes
sendo Deus brasileiro
nada mais é como antes.
Pobre não tem razão
lobo come não lobo
eta mundo mundão
povo bom, povo bobo.
Tanto tens, tanto vales
tenha santa paciência
quem não canta seus males
perde toda inocência
Muitos são os chamados
poucos os escolhidos
não esperem sentados
ou serão esquecidos.
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AMOR DE PRIMAVERA
O perfume
seduz e nos descobrimos
além do tato, em palavras,
olhares, silêncios e músicas.
O perfume (será o nosso
ou o daquela flor?)
chama a atenção
para aquele pequeno canto,
onde, baldios e felizes,
fazemos amor.
O tempo se abre
e não mais existe tempo.
Um pequeno ruído no nada
refaz a criação,
e nascem mundos e astros.
E a Terra não é nada,
só o pedaço de chão
onde amamos
e vimos brotar
uma nova flor.
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ESCREVI SEU NOME
Escrevi seu nome numa onda
a onda quebrou virou espuma
e no mar o seu nome afundou
Escrevi seu nome nas estrelas
o sol nasceu iluminou tudo
e o seu nome no céu apagou
Escrevi seu nome no papel
o vento veio varreu a rua
e o meu papel o vento levou
Quanta coisa tentei sem sucesso
mas não fica triste não menina
no coração seu nome ficou.
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EU TINHA UM AMOR
Eu tinha um amor
e quando dei conta
esse amor passou.
Um amor bonito
que não teve tempo.
Acabou sem grito
e sem violência.
Será que acabou?
Passou. Paciência ...
Era verdadeiro?
Não sei, nem me lembro
se foi o primeiro.
Mas ele chegou
assim de repente,
e logo passou.
Passou como faz
o carro na pista
o barco no cais.
Como aquela chuva
Grossa de verão
de pingos de uva.
Esse amor passou
e quando dei conta
eu tinha um amor.
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NATAL
A primeira palavra escrita,
qual terá sido?
Terá sido um nome, uma queixa
ou um pedido?
Onde o seu desenho impreciso
foi redigido?
Terá sido em pedra, em madeira
ou chão batido?
E quem haverá de ter lido,
mesmo que mal,
e compreendido o seu sentido
original?
Escrevo hoje já esquecido
da luz vital
movendo a mão em seu sentido,
palavra-aval.
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POÉTICA
Tento me concentrar
e o mosquito zune
num círculo em volta da luz.
O som insistente e forte
parece querer vencer
a morte. E de nada adianta
tentar escrever versos.
Eles têm asas também.
(Certos poemas são como esse mosquito.
Ficam rodando
sem encontrar saída.)
Vejo a luta do mosquito.
E a pouco era eu que lutava.
Olho à janela. Está fechada.
Abro-a. O mosquito continua
o vôo sem perceber meu gesto.
(Quantos carinhos tentei
que nunca chegaram
a cumprir seu destino...)
Alongam-se os círculos
e o mosquito vem pousar
ao meu lado. Perdemos a luta?
Cúmplice do seu esforço, recomeço
a escrever e com minha mão
devolvo-lhe a liberdade.
(Alguns poemas são escritos assim.
Surgem maiores do que as palavras
e só uma janela os coloca no papel.)
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POESIA
Pense na poesia como um vestido.
O enfeite desnecessário,
não o use.
A gola engomada que incomoda.
Deixe-a de lado.
As mangas hiperbólicas as cores redundantes.
Esqueça-as
Para que tanto tecido?
Pense bem no vestido.
E escreva poesia nua.
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FANTASIA
Fazer poesia é vestir
palavras com fantasia.
Fazer chorar e sorrir
na folha quase vazia.
Um pouco ser como louco
tentando coisas sozinho.
Por outro lado o barroco
das obras do Aleijadinho.
É ter a paixão insana
da amada por seu amor.
É ter a ginga baiana
do povo de Salvador.
Fazer como equilibrista
que cruza a vida num fio;
ou cantador repentista
na roda do desafio.
É aula de arquitetura
sem perda da liberdade.
Prazer e dor da procura.
Saber de um Mário de Andrade.
Se tantas são a poesia
que não se aprende na escola,
melhor ouvir a magia
do som do mestre Cartola.
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LIÇÕES SOB A ÁRVORE
(O menino e a borboleta do manacá)
Sob o manacá,
mexendo na terra
ele segue a trilha
das formigas indo
pequeninas pernas
escalando o tronco
Levam folhas verdes
grandes folhas verdes
maiores do que elas
Lagartas bonitas
de amarelo e preto
movem-se morosas
Um casulo oscila
e chama atenção
Não, não é o vento
Ele vai abrindo
flor desabrochando
por causa da vida
O ensaio do vôo:
plano quase reto
duas paralelas
O menino olha
acompanha tudo
até não mais vê-la.
Aprende admirado
no colo da terra
biologia e arte
Borboleta, filha
do casulo, filho
da lagarta, filha
De quem ela é filha?
Diz a borboleta
- Filha da mãe da árvore!
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SONHEI UM SONHO
Sonhei (foi um sonho ...)
e vi tão tristonho
meu sonho morrer.
Um sonho criança
de pura esperança
sem medo de ser.
Sonhei a paixão
que meu coração
não quis aprender.
Mas juro que tive
um sonho que vive
e deixa viver.
Senti tanto amor
que quando passou
foi quase morrer.
Eu fui tão menino
que agora o destino
fugiu sem eu ver.
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TARDE DEMAIS
É tarde pra repensar
ou propor qualquer besteira.
É tão tarde que domingo
parece segunda-feira.
Não podemos mais fingir
pra manter a situação.
É tarde demais também
pra enganar o coração.
Gritar, brigar pra saber
qual de nós foi o culpado,
é, mais ou menos, chorar
sobre o leite derramado.
Não dá pra fazer promessa,
em nome de alguma fé;
não temos tempo sobrando
nem pro último café.
Um beijo de despedida
seria lindo e romântico
(se fosse um gesto sincero
ou, pelo menos, semântico).
Infelizmente não dá
pra olhar nos olhos seus:
é tarde demais, too late,
até pra dizer adeus.
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ESQUECER ALGUÉM
Esquecer alguém
ou alguma coisa
que de novo vem
nos fazer sofrer
nos fazer lembrar
nos fazer temer
o que já passou
nunca vai passar
se você amou
e sofreu demais
se você viveu
e não vive mais
uma só canção
pode despertar
essa sensação
que faz engasgar
tempo que se foi
onda sem o mar
carta sem autor
fogo sem a luz
som que não chegou
o pior tormento
é lutar, em vão,
contra o esquecimento.
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PRESENTE
Silêncio. A agulha alinhavando o tecido
não fala nada. Na sala cheia de recordações
o silêncio é quase uma mobília.
O beijo dado com amor descansa
no espelho sem reflexo da penteadeira.
O primeiro gozo jaz esquecido
no pote fechado sobre a mesinha.
A linha vai costurando o vestido
como se fosse ela que conduzisse a cena.
- Vó!
Não, não é a neta que chama.
É o silêncio que guarda todos os sons.
São os quadros, os retratos que trazem tantas lembranças.
Silêncio. A agulha conhece o caminho do pano.
Os olhos embaçados estão voltados para dentro.
- Mãe!
Não, não é a filha que chama.
É ela que se vê amparando a filha,
na casa cheia de gente que já foi um dia.
Silêncio. O vestido vai ficando pronto.
E, como uma flor arrancada do chão,
será apenas um presente sendo oferecido.
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MENINA NA PRAIA
"Naquela tristeza imensa
Que há na voz do meu desejo."
Manuel Bandeira
O mar canta em ondas.
Ela não ouve o mar.
Sua voz é mais forte
que o canto do mar.
Sua dor dói mais
que o bater das ondas.
O mar já sofreu,
carregou escravos nos porões.
Ainda há sangue no mar.
Mas para ela o verde
e as espumas alvas
são o mar. Bela imagem,
inútil para quem sofre,
para quem quer ver
no mundo, a dor que sente.
Gaivotas, em vírgulas,
cortam o céu, mergulham
no mar. Elas, de tanto sal,
ficam cegas. Morrem de fome.
Homens também morrem.
Mas ela só vê gaivotas,
lindas gaivotas no céu,
e o mar doce, sem dor.
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O RIO NÃO SE REPETE
Verdade, o rio não se repete.
A mão toca a água tentando
reter um instante ao menos.
Mas a água do rio não pára,
levando a esperança entre os dedos.
Tua mão molhada fica
sem nenhuma explicação.
O rosto refletido estático
sobre a água que passa,
não se repete também.
A vida corre como o rio.
Tentas apreender dentro do olhar
um instante da tua vida -
sem nenhuma explicação.
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VIDA VIDA
Minha mulher tirou um filho,
ontem também o pai de um amigo morreu.
Dois instantes, misteriosos, que me levam a pensar:
Quem perdeu?
Meu filho não viu o sol a lua,
meu filho não viu nada.
O pai do meu amigo viu
(mas quanta coisa perdeu)
Os dois agora estão juntos
encobertos pelo silêncio cósmico.
E o vazio de ambos cai sobre mim.
Gostaria de poder rezar pelo meu filho.
Gostaria de poder crer na reza.
Mas não creio!
Não quero rezar nem chorar.
Quero apenas pensar nessas coisas:
Sofrer e saber que se sofre,
viver e saber que se morre.
Deixar meu filho em silêncio.
Deixar os mortos no seu silêncio.
Perguntar apenas o que virá.
E sei que virão muitos filhos e pai mortos.
E pensar na vida; vida vida.
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INSPIRAÇÃO
O poema morreu
antes de chegar ao papel.
Tinha corpo e alma,
e vida própria pra viver.
Poderia ser
um lindo filho, um grande amigo.
No entanto, escapou
por falta de tinta e papel.
E o poeta fica
buscando ouvir o som dos versos;
contando nos dedos,
tentando compor as palavras.
Mas elas são tantas
(todas insubstituíveis)
que o poeta erra,
esquece o passo, sai da dança.
Quando chega em casa
ele tenta recomeçar.
Com tinta e papel.
Escreve; mas por profissão.
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IMPRESSÕES SOBRE O PAPEL EM BRANCO
Diante do papel em branco
somos tudo e nada;
Cada palavra é possibilidade
sobre o vazio.
Nosso corpo não cabe na folha
(mas tantas vezes sentimos
que há coisas que não cabem
em nosso corpo,
e nem por isso deixamos de sentir
falar polir escrevinhar),
embora caiba o essencial.
A clara luminosidade do branco
ofusca qualquer idéia errante.
Não há fissura sobre o marfim
da pele artificial,
embora haja a impureza
das nossas mãos.
Se escrevo um nome (ou mil)
serão nomes apenas,
ou as minhas falsas impressões,
mas serão um testemunho.
Uma folha de papel em branco
guarda todos os livros
em sua silenciosa brancura.
Hóstia da celebração
não do desejo de viver
e sim da doação
e do desejo de saber.
As nódoas que ficarão registradas,
com todas as imperfeições,
em seu corpo reluzente,
serão quase nada,
sementes.
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PÁSSAROS
- Estás triste demais.
- Sim, estou muito triste,
a dor foi me tomando.
- Por que tanta tristeza?
- Vês naquela gaiola
o pássaro cantando?
- Sim, um bonito canto.
- Fiquei triste porque
estava me lembrando ...
- Fala. Diz o que sentes!
- Os sonhos que não quis
tentar realizar ...
- ... Ouves na voz do pássaro?!
- Não. Eles só respondem
outro sonho cantar.
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CAFÉ DA MANHÃ
A faca corta o pão,
na mesa torta ela corta
o pão que o diabo não quis.
Olhos, lanças, machucam os pobres corpos,
machucam-se os dentes podres.
Não tem manteiga. A faca corta,
engana o estômago e o pão
(e falam que não há brincadeiras!);
o café ralo, claro, marrom como
sujo. Em volta quase nada se
comprou: cama da ex-patroa,
armário achado num lixo, etc.
Mas, são deles até uma pedra rolar,
alguma batida da polícia destruir,
ou a desapropriação pintar.
O sol lá fora brilha, olho
tolo, chama-os para trabalhar.
E um sentimento, talvez mágoa,
irmão como foi também Caim,
pergunta, Anjo da guarda,
por que tem que ser assim?
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FRUTO DO POVO
Cartola não mais fará
canções, mágicas, em verde e rosa.
Mas tudo que o Poeta criou
ficou.
E se "tudo no mundo acontece",
a História faz justiça:
preserva aquilo que merece.
O morro, o mesmo morro,
de casas invadidas pela polícia.
Este mesmo morro, com tanta barriga vazia,
canta no seu enterro "As Rosas não Falam..."
Seu povo está aí, vivo,
e ele não é pacato nem ordeiro.
Não, o seu povo é batuqueiro.
E o batuque a cada dia fica mais afinado
(pro samba de muitos braços, pernas e vozes,
composto na mais fina sintonia).
E chegado o dia
alguém vai lembrar
de sua melodia
"corra e olhe o céu
que o sol vem trazer: Bom dia."
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VERSOS A LUIZA
Minha filha de dois anos
me chama para brincar.
Não sabe dos compromissos,
do trabalho a entregar.
-"Papai! Papai! Vem aqui.
Corre, eu quero subir."
Seus quinze quilos de luz
querem ir para a janela.
Saudar o claro do dia.
Sorrir para o barco a vela.
E diz. - "Um de cada vez;'
Eu conto: um, dois e...três!
O salto para o meu colo,
inicia a brincadeira:
andar, correr pela sala,
pintar, virar cozinheira.
-"Vem comigo. Vem comigo!
Andando vê se eu a sigo.
Num canto muito pequeno
se senta e quer que eu me sente.
Papai é grande demais;
eu tento ser convincente.
-"Não, vem ficar escondido!”
Eu sento e capto o sentido.
E fico maravilhado
aprendendo a aprender.
Aonde vamos agora,
sou eu quem quero saber.
E diz: -"Um de cada vez;"
Sim, filha, um de cada vez.
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CHUVA
Serenamente chora a chuva
sobre corpos vagos na neblina,
soluçando sílibas graves,
solenes, embora sem sentido.
Só, contemplo a cidade cinza;
sem sentimentalismo solar;
sem saudade de sonho ou sono;
seco, capaz de sugar as sombras.
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A PALAVRA
A palavra que me cabe
Não me cala
A palavra que me fala
Não me sabe
A palavra que me veste
Não me cobre
A palavra que me sobre
Não me reste
A palavra que me acenda
Não se apague
A palavra que me afague
Não me prenda
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Escrever é difícil.
Viver é difícil.
A solidão é difícil.
A comunhão é difícil.
É difícil demais.
É difícil.
Difícil.
Até que não mais.